Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 25(2) - Junho 2025

Relato de Caso

Diabetes mellitus como teratógeno causando síndrome de regressão caudal

Diabetes mellitus as a teratogen causing caudal regression syndrome

 

Wallace William da Silva Meireles1; Rosicler Pereira de Gois2; Vitor Lucas Lopes Braga2,3; Erlane Marques Ribeiro1

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.2025.0327

1. Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de Genética Médica, Fortaleza, CE, Brasil
2. Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de Neonatologia, Fortaleza, CE, Brasil
4. Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de Pediatria, Fortaleza, CE, Brasil

 

Endereço para correspondência:

wallacemeireles@hotmail.com

Instituição: Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de Genética Médica, Fortaleza, CE, Brasil

Recebido em: 09/07/2024
Aprovado em: 23/09/2024

 

Resumo

INTRODUÇÃO: A síndrome da regressão caudal (SRC), também denominada sequência de displasia caudal, síndrome de regressão sacral ou agenesia sacral, abrange um grupo de malformações congênitas raras que afetam principalmente a medula espinhal e as vértebras, mas também os sistemas urinário e genital e as extremidades inferiores. A hiperglicemia é o teratógeno mais comumente envolvido na SRC, por provável produção aumentada de radicais livres a partir do influxo de glicose nas células sobrepondo-se à capacidade enzimática imatura de neutralizar este excesso, afetando a capacidade de transcrição.
DESCRIÇÃO: Lactente de 2 meses, masculino, atendido no Ambulatório de Genética, encaminhado do serviço de ortopedia, por pés tortos congênitos e mancha em dorso. O paciente era filho de pais não consanguíneos, sendo o terceiro filho de mãe de 25 anos de idade. A mãe, G3P3A0, tinha diabetes tipo 2. No pré-natal foi feita insulina NPH durante toda a gestação, mas o controle glicêmico foi irregular. Os membros inferiores mostravam tamanho reduzido, espasticidade leve a moderada e reflexos presentes. O desenvolvimento neurológico se mostrava adequado para a idade. O estudo radiológico após o nascimento mostrou ausência de osso sacral. A ressonância magnética de coluna lombossacra mostrou agenesia de sacro e cone medular pequeno, sem mielomeningocele.
DISCUSSÃO: O caso que relatamos é compatível com SRC decorrente do diabetes materno não controlado durante a gravidez.

Palavras-chave: Diabetes mellitus. Teratogênicos. Coluna vertebral.


Abstract

INTRODUCTION: Caudal regression syndrome (CRS), also called caudal dysplasia sequence, sacral regression syndrome or sacral agenesis, encompasses a group of rare congenital malformations that mainly affect the spinal cord and vertebrae, but also the urinary and genital systems and the lower extremities. Hyperglycemia is the most common teratogen involved in CRS, probably due to increased production of free radicals from the influx of glucose into cells and overcoming the immature enzymatic capacity to neutralize this excess, affecting transcription capacity.
DESCRIPTION: 2-month-old male infant, seen at the Genetics Outpatient Clinic, referred from the orthopedics service, due to congenital clubfeet and spot on the back. The patient was the son of nonconsanguineous parents, the third son of a 25-year-old mother. The mother, G3P3A0, had type 2 diabetes. In prenatal care, NPH insulin was administered throughout the pregnancy, but glycemic control was irregular. The lower limbs showed reduced size, mild to moderate spasticity and reflexes were present. Neurological development was appropriate for age. The radiological study after birth showed the absence of sacral bone. Magnetic resonance imaging of the lumbosacral spine showed agenesis of the sacrum and small conus medullaris, without myelomeningocele.
DISCUSSION: The case we report is compatible with CRS resulting from uncontrolled maternal diabetes during pregnancy.

Keywords: Teratogens. Spine. Diabetes Mellitus.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome da regressão caudal (SRC), também denominada sequência de displasia caudal, síndrome de regressão sacral ou agenesia sacral, abrange um grupo de malformações congênitas raras que afetam principalmente a medula espinhal e as vértebras, além dos sistemas urinário e genital e as extremidades inferiores.1 No fenótipo predominam defeitos genitais e desenvolvimento incompleto do sacro. Foi descrita por Bernard Duhamel em 1961,2 com prevalência de 1-3 nascimentos a cada 100.000 gestações e maior frequência no sexo masculino (M2,7:F1) e em filhos de mães diabéticas.3

A etiologia é multifatorial, com interação entre fatores ambientais e predisposição genética. Diabetes materno, a interação entre fatores ambientais e a hipoperfusão vascular são as etiologias mais descritas.3,4,5,6,7

A hiperglicemia é o teratógeno mais comumente envolvido na SRC, por provável produção aumentada de radicais livres a partir do influxo de glicose nas células, sobrepondo-se à capacidade enzimática imatura de neutralizar este excesso, afetando a capacidade de transcrição.3,7 A apresentação clínica é marcada por desenvolvimento incompleto do sacro, defeitos das vértebras lombares, ausência do corpo sacral, achatamento das nádegas, encurtamento da fenda interglútea, ruptura da medula espinhal distal, incontinência urinária ou fecal até uma lesão neurológica completa e diminuição acentuada do crescimento da região caudal e dos movimentos das pernas.3,4,5,6,7

O objetivo deste estudo é relatar um lactente com fenótipo da SRC enfatizando a etiologia pela hiperglicemia materna.

 

RELATO DE CASO

Lactente de 2 meses, masculino, atendido no Ambulatório de Genética, encaminhado do serviço de ortopedia, por pés tortos congênitos e mancha em dorso. O probando era filho de pais não consanguíneos, sendo o terceiro filho de mãe de 25 anos de idade - história familiar negativa para malformações e síndromes genéticas. A mãe, G3P3A0, tinha diabetes tipo 2. No pré-natal foi feita insulina NPH durante toda a gestação, mas o controle glicêmico foi irregular. O ultrassom obstétrico de 30 semanas identificou os defeitos nos pés.

A criança nasceu a termo com 38 semanas, de parto cesáreo por apresentação pélvica, Apgar 7/9, peso de 3.425g (z escore: 0), estatura de 46cm (z escore: -2) e perímetro cefálico de 36cm (z escore: +1). Ao exame físico apresentava escafocefalia, lesão hemangiomatosa plana (10x 9cm) em região lombossacra, redução discreta do volume das nádegas, fenda glútea pequena, redução do tamanho dos membros inferiores (principalmente por rizomelia) e pés equinovaros, além de fosseta em nádega direita (Figura 1). A genitália era masculina e com testículos tópicos. Os membros inferiores mostravam tamanho reduzido (principalmente por rizomelia), espasticidade leve a moderada e reflexos presentes. O desenvolvimento neurológico se mostrava adequado para a idade.

 

 

O estudo radiológico após o nascimento mostrou ausência de osso sacral. A ressonância magnética de coluna lombossacra mostrou agenesia de sacro e cone medular pequeno, sem mielomeningocele. Ultrassom transfontanelar estava normal aos 20 dias de vida e o ultrassom de abdome descreveu dilatação pielocalicial bilateral com hidronefrose. O ecocardiograma evidenciou comunicação interventricular. O lactente estava em uso de leite de fórmula complementar ao aleitamento materno, oxibutinina, cefalexina e vitamina D. A idade não permitia estabelecer diagnóstico de incontinência urinária ou fecal. Concluímos tratar-se de SRC tipo I.

 

DISCUSSÃO

O caso que relatamos é compatível com SRC decorrente do diabetes materno não controlado durante a gravidez. A SRC é uma síndrome rara que afeta em maior proporção meninos filhos de mãe diabética e cuja taxa de incidência é 200 vezes maior em pacientes com história materna de diabetes insulino-dependente, embora haja casos com herança autossômica dominante com expressividade variável, geralmente com fenótipo mais leve.3,4,6

A incidência da SRC nas gestantes sem diabetes é 0,2-1%. Cerca de 22% dos casos estão associados com diabetes mellitus I ou outro tipo de diabetes mellitus da mãe.3,4

Mulheres que fazem uso de insulina, como no caso que apresentamos, têm probabilidade maior de gerar uma criança com SRC em relação a mulheres não dependentes de insulina, além do maior risco de associação com defeitos musculoesqueléticos, geniturinários, cardíaco, respiratório e gastrointestinais.3

O desenvolvimento embriológico anormal do sacro ocorre na quarta semana.4 Como a placenta é uma barreira efetiva à insulina materna e a insulina fetal não é produzida antes da oitava semana de gestação, o feto fica vulnerável ao insulto hiperglicêmico durante esse período. Pode haver flexão e abdução dos quadris e pterígio poplíteo, decorrentes da falta de movimento, além de pé equinovaro e calcâneo valgo.3

Existem várias classificações para os casos de SRC,1,3,4,5,6,7 sendo as mais referidas a proposta por Pang e a classificação proposta por Renshaw,1 que consiste em:

Tipo I: agenesia sacral total ou parcial unilateral.

Tipo II: agenesia sacral total e lombar variável e ílio articulando com lados da vértebra inferior.

Tipo III: agenesia sacral total e lombar variável com a placa terminal caudal da vértebra inferior repousando acima da ília fundida ou de uma anfiartrose ilíaca.

Tipo IV: fusão de tecidos dos membros inferiores.

Tipo V: sirenomielia com apenas 1 fêmur e 1 tíbia.

O mecanismo etiopatogênico da SRC nos filhos de mães diabéticas insulino-dependentes envolve hiperglicemia, hipóxia, cetonemia, glicosilação anormal de proteínas e/ou desequilíbrio hormonal e do metabolismo do ácido retinoico com potenciais efeitos teratogênicos. A predisposição genética envolve mutações em vários genes como, CDX1 (caudal-type homeobox transcription factor 1 - OMIM 600746), ID1 (inhibitor of DNA bindig 1 - OMIM 600349), CDX2 (caudal-type homeobox transcription factor 2 - OMIM 600297), MBTPS1 (membra-bound transcription factor protease, site 1 - OMIM 603355), CLTCL1 (clathrin, heavy polypeptide-like 1 - OMIM 601273), ZNF330 (zinc finger protein 330 - OMIM 609550), SPTBN5 (spectrin, beta, nonerythrocytic - OMIM 605916), SMARCA2 (SWI/SNF-related, matrix-associated, actin-dependent regulator of chromatin, subfamily A, member 2 - OMIM 600014).8 Há relatos de que as sulfonamidas antidiabetogênicas orais utilizadas no primeiro trimestre de gestação possam provocar maior proporção de nascimento de crianças com problemas cognitivos do que com SRC.3

Recentemente, o gene homeobox HLXB9 tem sido apontado como o responsável pela agenesia sacral parcial de herança autossômica dominante. O risco de recorrência dessa condição é muito pequeno, embora mais alto nas mães diabéticas. Aparentemente, o pai diabético não tem efeito no desenvolvimento de SRC.3

O paciente desse relato tem os sinais marcadores de SRC, que envolvem agenesia do sacro com redução de tamanho e movimentos de membros inferiores, fazendo com que o paciente assuma uma posição sentado como "Buda" associada a cardiopatia congênita (CIV) e alteração do aparelho urinário. Pode ocorrer incontinência secundária às lesões ósseas e nervosas primárias. As anormalidades ocasionais incluem agenesia renal, ânus imperfurado, lábio leporino, fenda palatina, microcefalia, meningomielocele e implantação dentária anômala,3,6 que não foram observadas no caso que apresentamos. A gravidade do diabetes materno ainda predispõe a malformações cardíacas e renais,3 como no caso que apresentamos.

A SRC pode ser diagnosticada pelo ultrassom durante a gestação,6,7 mas no caso que atendemos, a paciente teve diagnóstico apenas das alterações dos pés e o diagnóstico foi pós-natal, a partir dos exames de imagem. A ressonância magnética é o exame ideal para avaliar as estruturas alteradas na SRC.6

Os casos mais graves de SRC têm óbito precoce, principalmente decorrente de cardiopatia e nefropatia,7 mas a sobrevida tem se mostrado crescente às custas do diagnóstico pré-natal, cuidados obstétricos, planejamento de via de parto, vigilância das complicações maternas e identificação precoce de defeitos associados logo após o nascimento. Os pacientes que sobrevivem além da fase de lactente, como no caso que apresentamos, têm cognição normal.3

O tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível, incluindo cuidados paliativos e multidisciplinares para controle clínico de infecções, insuficiência cardíaca, renal e constipação intestinal. Cirurgias ortopédicas e urogenitais são programadas conforme a necessidade.3,4 Os aspectos psicológicos devem ser considerados. O aconselhamento genético é indicado em todos os casos. O risco de recorrência é desprezível no caso em que haja controle adequado do diabetes na próxima gravidez.

Consideramos que os cuidados antecipatórios em relação à prevenção de anomalias congênitas não foram realizados para a mãe do paciente que acompanhamos. A educação em saúde para mulheres que têm diabetes mellitus e estão em período fértil e o pré-natal adequado visando reduzir os níveis séricos de glicose durante a gravidez poderiam ter evitado os defeitos congênitos do paciente em questão.

 

Referências

1. Bulahs I, Teivane A, Platkajis A, Balodis A. Caudal Regression Syndrome First Diagnosed in Adulthood: A Case Report and a Review of the Literature. Diagnostics (Basel). 2024 11;14(10):1000. doi: 10.3390/diagnostics14101000.

2. Duhamel B: From the mermaid to anal imperforation: The syndrome of caudal regression. Arch Dis Child 1961; 36: 152-5.

3. Jasiewicz B and Kacki W. Caudal Regression Syndrome: A Narrative Review: An Orthopedic Point of View. Children 2023; 10: 589. Disponível em: https://doi.org/10.3390/children10030589

4. Kylat RI and Bader M. Caudal Regression Syndrome. Children 2020; 7: 211. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7694368/

5. Seidahmed MZ, Abdelbasit OB, Alhussein K A, Miqdad A M, Khalil, MI Mustafa A, Salih MA. Sirenomelia and severe caudal regression syndrome. Saudi Med J 2014; Vol. 35 Supplement 1: s36-43. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4362094/

6. Boruah DK, Dhingani DD, Achar S, Prakash A, Augustine A, Sanyal S, et al. Magnetic Resonance Imaging Analysis of Caudal Regression Syndrome and Concomitant Anomalies in Pediatric Patients. J Clin Imaging Sci 2016; 6: 36. Disponível em: http://www.clinicalimagingscience.org/text.asp?2016/6/1/36/190892

7. Sen CKK and Patel SLCM. Caudal Regression Syndrome. MJAFI 2007; 63: 178-179. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4925436/

8. Wang MJ, Febres-Cordero DA, Poorvu T, Delerme P, Hecht J, Oyelese Y, O'Brien B, Ferrés MA. Caudal regression in fetus with de novo SMARCA2 pathogenic variant. Prenat Diagn. 2024 Aug;44(9):1111-1114. doi: 10.1002/pd.6627. Epub 2024 Jun 14.